Fibrose Cística (Manifestações Gastrointestinais)

Resumo

1. Definição e Fisiopatologia A Fibrose Cística (FC) é uma doença genética, autossômica recessiva, causada por mutações no gene que codifica a proteína CFTR (Regulador de Condutância Transmembrana da Fibrose Cística). A disfunção desta proteína, um canal de íons, resulta na produção de secreções exócrinas espessas e viscosas em múltiplos órgãos. Fisiopatologia Gastrointestinal: As manifestações gastrointestinais são centrais na FC e frequentemente as primeiras a aparecer. No Pâncreas: A obst

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Gastrointestinais e Alergias Alimentares > Doenças Sistêmicas com Manifestação GI > Fibrose Cística (Manifestações Gastrointestinais)

Conduta Completa

1. Definição e Fisiopatologia A Fibrose Cística (FC) é uma doença genética, autossômica recessiva, causada por mutações no gene que codifica a proteína CFTR (Regulador de Condutância Transmembrana da Fibrose Cística). A disfunção desta proteína, um canal de íons, resulta na produção de secreções exócrinas espessas e viscosas em múltiplos órgãos. Fisiopatologia Gastrointestinal: As manifestações gastrointestinais são centrais na FC e frequentemente as primeiras a aparecer. No Pâncreas: A obstrução dos pequenos ductos pancreáticos pelo muco espesso impede a secreção de enzimas digestivas. Este processo leva à autodigestão, inflamação crônica, destruição progressiva do tecido acinar e substituição por fibrose e gordura. O resultado é a Insuficiência Pancreática Exócrina (IPE), presente em 85-90% dos pacientes. Nos Intestinos: O muco desidratado e a má digestão de gorduras levam a um conteúdo intestinal espesso. No período neonatal, isso pode se manifestar como Íleo Meconial. Em crianças mais velhas e adultos, pode causar a Síndrome da Obstrução Intestinal Distal (DIOS). No Fígado: A obstrução dos ductos biliares pode causar colestase, fibrose biliar focal e, em uma minoria, evoluir para cirrose biliar e hipertensão portal. 2. Manifestações Clínicas Insuficiência Pancreática Exócrina (IPE): É a principal manifestação. Esteatorreia: Fezes volumosas, pálidas, gordurosas, fétidas e que boiam. Má Absorção e Desnutrição: Dificuldade de ganho de peso e crescimento apesar de um apetite voraz (polifagia). Deficiência de Vitaminas Lipossolúveis: Sinais de deficiência de vitaminas A, D, E e K. Íleo Meconial: Ocorre em 15-20% dos recém-nascidos com FC. Apresenta-se como uma obstrução intestinal neonatal, com distensão abdominal, vômitos biliosos e ausência de eliminação de mecônio. Síndrome da Obstrução Intestinal Distal (DIOS): Manifesta-se com dor abdominal em cólica, distensão e, por vezes, uma massa palpável na fossa ilíaca direita. Prolapso Retal: Pode ocorrer devido à desnutrição, hipotonia e evacuações volumosas. 3. Diagnóstico O diagnóstico da FC é feito pela triagem neonatal, teste do suor e/ou análise genética. A avaliação das manifestações gastrointestinais é complementar. Diagnóstico da Insuficiência Pancreática Exócrina (IPE): Elastase-1 Pancreática Fecal: É o padrão-ouro. É um teste não invasivo, sensível e específico. Valores < 200 mcg/g de fezes confirmam a IPE. Valores < 100 mcg/g demonstram sensibilidade e especificidade próximas de 100% para IPE grave em pediatria. 4. Manejo e Tratamento: A Abordagem Multidisciplinar O tratamento da FC é complexo e deve ser conduzido por uma equipe multidisciplinar em um centro de referência. Pilar 1: Terapia de Reposição de Enzimas Pancreáticas (TREP) Indicação: Para todos os pacientes com IPE confirmada. Princípio: Administrar cápsulas de pancrelipase com revestimento entérico, que liberam as enzimas no duodeno para permitir a digestão. Administração: As enzimas devem ser tomadas imediatamente antes ou durante todas as refeições e lanches que contenham gordura ou proteína. A dose é individualizada e ajustada com base nos sintomas e no crescimento, não devendo exceder 10.000 UI de lipase/kg/dia devido ao risco de colonopatia fibrosante. Pilar 2: Suporte Nutricional Agressivo Objetivo: Manter um estado nutricional normal (IMC no percentil ≥ 50) é um dos fatores mais importantes para uma melhor função pulmonar e sobrevida. Dieta: Hipercalórica (120-150% das necessidades diárias), hiperproteica e hiperlipídica (sem restrição de gorduras). Suplementação Vitamínica: Doses elevadas de vitaminas lipossolúveis (A, D, E, K) são obrigatórias. Suplementação de Sal: Reposição liberal de cloreto de sódio. Pilar 3: Terapias Moduladoras do CFTR Esta é a fronteira do tratamento da FC. São medicamentos que agem diretamente no defeito da proteína CFTR, corrigindo sua função. O uso é específico para determinadas mutações genéticas. Reavaliação da IPE: Há evidências de que alguns pacientes em uso de moduladores de alta eficácia (como Elexacaftor/Tezacaftor/Ivacaftor) podem apresentar recuperação parcial ou total da função pancreática exócrina. Portanto, a repetição da dosagem de elastase fecal pode ser considerada após alguns meses de tratamento bem-sucedido. Referências Bibliográficas 1. Athanazio, R. A., Silva Filho, L. V. R. F., Vergara, A. A., et al. (2017). Diretrizes brasileiras de diagnóstico e tratamento da fibrose cística. Jornal Brasileiro de Pneumologia, 43(3), 219–245. 2. Turck, D., Braegger, C. P., Colombo, C., et al. (2016). ESPEN-ESPGHAN-ECFS guidelines on nutrition care for infants, children, and adults with cystic fibrosis. Clinical Nutrition, 35(3), 557–577. 3. Borowitz, D., Robinson, K. A., Rosenfeld, M., et al. (2009). Cystic Fibrosis Foundation evidence-based guidelines for management of infants with cystic fibrosis. The Journal of Pediatrics, 155(6 Suppl), S73–S93. 4. Stallings, V. A., et al. (2008). Evidence-based practice recommendations for nutrition-related management of children and adults with cystic fibrosis and pancreatic insufficiency: results of a systematic review. Journal of the American Dietetic Association, 108(5), 832-839. 5. Heijerman, H. G. M., et al. (2019). Efficacy and safety of the elexacaftor plus tezacaftor plus ivacaftor combination regimen in people with cystic fibrosis homozygous for the F508del mutation: a double-blind, randomised, phase 3 trial. The Lancet, 394(10212), 1940-1948. 6. Gelfond, D., & Borowitz, D. (2013). Gastrointestinal complications of cystic fibrosis. Clinical Gastroenterology and Hepatology, 11(4), 333-342. 7. Megalaa, R., et al. (2023). Pancreatic exocrine function and nutritional outcomes with Elexacaftor/Tezacaftor/Ivacaftor in children with cystic fibrosis. Journal of Cystic Fibrosis.

Tratamento

1. Orientações Gerais ao Prescritor O tratamento gastrointestinal da FC é crônico e multidisciplinar. As prescrições devem ser ajustadas regularmente pela equipe do centro de referência. A terapia de reposição enzimática (TREP) é a base do tratamento da insuficiência pancreática. A dose deve ser individualizada para cada paciente. A suplementação de vitaminas lipossolúveis em altas doses é obrigatória. 2. Prescrição para Terapia de Reposição de Enzimas Pancreáticas (TREP) Prescrição: Pancrelipase em cápsulas com microesferas gastrorresistentes (ex: Creon®, nas apresentações de 10.000 ou 25.000 UI de lipase). Dose Inicial: Para lactentes: 2.000 a 4.000 UI de lipase para cada 120 mL de leite/fórmula. Para crianças < 4 anos: 1.000 UI de lipase por kg de peso por refeição. Para crianças > 4 anos: 500 UI de lipase por kg de peso por refeição. Modo de Usar: Administrar as cápsulas imediatamente antes ou no início de todas as refeições e lanches. Para lactentes, as cápsulas podem ser abertas e as microesferas misturadas com uma pequena quantidade de alimento ácido (ex: purê de maçã), mas não devem ser mastigadas. Ajuste: A dose deve ser titulada conforme a resposta clínica (melhora da esteatorreia, ganho de peso), sem exceder a dose máxima de 10.000 UI de lipase/kg/dia ou 2.500 UI de lipase/kg/refeição, devido ao risco de colonopatia fibrosante. 3. Prescrição para Suplementação Vitamínica e Mineral Prescrição de Vitaminas Lipossolúveis (doses diárias): Prescrever fórmula polivitamínica específica para FC, que já contém altas doses de vitaminas lipossolúveis (A, D, E, K). ou prescrever as vitaminas individualmente: Vitamina A: 5.000 a 10.000 UI/dia, VO. Vitamina D3: 800 a 2.000 UI/dia, VO. Vitamina E: 100 a 400 UI/dia, VO. Vitamina K: 0,3 a 0,5 mg/dia, VO. Prescrição de Sal: Orientar suplementação liberal de Cloreto de Sódio (sal de cozinha) na dieta. Prescrever cápsulas de sal em situações de calor intenso ou exercício físico. 4. Prescrição para o Manejo da Síndrome da Obstrução Intestinal Distal (DIOS) Manejo Ambulatorial (Obstrução Parcial): Prescrição: Polietilenoglicol 3350 ou 4000 (PEG), sem eletrólitos, em pó para solução. Dose: Prescrever na dose de 1 a 1,5 g/kg/dia, por via oral, dividida em 2 tomadas, até a resolução do quadro. Orientar hidratação oral vigorosa. Manejo Hospitalar (Obstrução Completa ou Falha do Tratamento Oral): Admitir para internação. Manter em jejum (NPO). Iniciar Hidratação Venosa com Soro Fisiológico 0,9%. Prescrever Solução de Polietilenoglicol com eletrólitos para preparo de cólon, administrada via Sonda Nasogástrica, na taxa de 20-40 mL/kg/hora, até a eliminação de efluente retal claro. Solicitar avaliação da Cirurgia Pediátrica. 5. Prescrição de Orientações Nutricionais Encaminhar para acompanhamento com Nutricionista especializado em Fibrose Cística. Orientar sobre a necessidade de uma dieta hipercalórica e hiperproteica, com 35-40% do valor calórico total proveniente de gorduras. Reforçar a importância de tomar as enzimas pancreáticas com TODAS as refeições e lanches. Discutir o uso de suplementos nutricionais orais para atingir as metas calóricas.

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