Hipotireoidismo congênito
Resumo
1. Definição e Contexto Clínico
O hipotireoidismo congênito (HC) é uma emergência endocrinológica pediátrica caracterizada pela produção insuficiente de hormônios tireoidianos desde o nascimento. Esta condição representa uma das causas mais comuns de deficiência intelectual prevenível no mundo, com uma prevalência que varia de 1:1.500 a 1:4.000 nascidos vivos. O diagnóstico e tratamento precoces são cruciais, pois os hormônios tireoidianos são fundamentais para a maturação do sistema nervoso cen
Categoria
Endocrinologia e Distúrbios Metabólicos > Doenças da Tireoide > Hipotireoidismo congênito
Conduta Completa
1. Definição e Contexto Clínico
O hipotireoidismo congênito (HC) é uma emergência endocrinológica pediátrica caracterizada pela produção insuficiente de hormônios tireoidianos desde o nascimento. Esta condição representa uma das causas mais comuns de deficiência intelectual prevenível no mundo, com uma prevalência que varia de 1:1.500 a 1:4.000 nascidos vivos. O diagnóstico e tratamento precoces são cruciais, pois os hormônios tireoidianos são fundamentais para a maturação do sistema nervoso central, processo que ocorre intensamente desde a vida fetal até os primeiros anos de vida.
2. Fisiopatologia
A deficiência de hormônios tireoidianos (tiroxina - T4 e tri-iodotironina - T3) no período perinatal e nos primeiros anos de vida interfere criticamente no desenvolvimento cerebral, afetando a migração neuronal, a diferenciação celular, a sinaptogênese e a mielinização. A ausência desses hormônios leva a um retardo global do metabolismo, impactando também o crescimento somático e a maturação óssea. A maioria dos casos (85-90%) resulta de uma falha na glândula tireoide (hipotireoidismo primário), enquanto os demais se devem a deficiências hipofisárias ou hipotalâmicas (hipotireoidismo central).
3. Etiologia e Fatores de Risco
O hipotireoidismo congênito pode ser classificado como permanente ou transitório.
Hipotireoidismo Congênito Primário (Permanente):
Disgenesias tireoidianas (85% dos casos): Correspondem a defeitos na formação da glândula.
Ectopia: a glândula se localiza fora de sua topografia habitual (causa mais comum).
Agenesia: ausência completa da glândula.
Hipoplasia: desenvolvimento inadequado da glândula.
Disormonogênese (10-15% dos casos): Defeitos enzimáticos hereditários na síntese dos hormônios tireoidianos, geralmente com a glândula tópica e aumentada (bócio).
Resistência periférica aos hormônios tireoidianos: Condição rara.
Hipotireoidismo Congênito Central (Secundário ou Terciário):
Causado por deficiência na produção de TSH (hipofisário) ou TRH (hipotalâmico).
Frequentemente associado a outras deficiências hormonais hipofisárias e anomalias da linha média.
Hipotireoidismo Congênito Transitório:
Exposição materna a substâncias antitireoidianas ou iodo.
Transferência transplacentária de anticorpos maternos bloqueadores do receptor de TSH.
Prematuridade e baixo peso ao nascer.
4. Avaliação Clínica e Diagnóstico
A maioria dos recém-nascidos com HC é assintomática ou apresenta sinais muito sutis ao nascimento, o que reforça a importância da triagem neonatal. O diagnóstico clínico tardio está associado a sequelas neurológicas irreversíveis.
Manifestações Clínicas
Quando presentes, os sinais e sintomas se desenvolvem ao longo das primeiras semanas ou meses:
Sinais precoces: Icterícia prolongada (acima de 2 semanas), dificuldade alimentar, sucção débil, letargia e sonolência excessiva.
Sinais tardios: Hérnia umbilical, macroglossia, choro rouco, constipação intestinal, pele seca e fria, fácies grosseira, fontanelas amplas (especialmente a posterior) e hipotonia muscular.
Exame Físico
O exame físico pode ser normal no período neonatal. Achados sugestivos incluem a palpação de bócio (sugere disormonogênese), além dos sinais clínicos já mencionados. A avaliação do crescimento e do desenvolvimento neuropsicomotor é fundamental no seguimento.
Avaliação de Gravidade
A gravidade é determinada bioquimicamente pelos níveis de T4 livre (T4L) no momento do diagnóstico. Considera-se grave o HC com T4L muito baixo ou indetectável, o que se correlaciona com maior risco de atraso no desenvolvimento, mesmo com tratamento adequado.
Diagnóstico Diferencial
O principal diagnóstico diferencial é a icterícia fisiológica prolongada. Outras condições que cursam com hipotonia e letargia no período neonatal, como sepse, doenças metabólicas e síndromes genéticas (ex: Síndrome de Down, que também tem maior incidência de HC), devem ser consideradas.
5. Exames Complementares
Laboratoriais
Triagem Neonatal ("Teste do Pezinho"): É o pilar do diagnóstico precoce. Realiza-se a dosagem de TSH em amostra de sangue em papel filtro, idealmente entre o 3º e o 5º dia de vida. Um valor de TSH > 10-20 mUI/L é considerado alterado e requer investigação.
Confirmação Diagnóstica: Realizada com a dosagem sérica (sangue venoso) de TSH e T4 livre. Um resultado de TSH elevado com T4 livre baixo confirma o diagnóstico de hipotireoidismo primário. No hipotireoidismo central, encontra-se T4 livre baixo com TSH normal ou baixo.
Imagem
Ultrassonografia de tireoide: Exame de escolha para a investigação etiológica inicial, capaz de identificar a localização e o tamanho da glândula.
Cintilografia de tireoide (com iodo-123 ou tecnécio-99m): Avalia a captação do rádio-fármaco, sendo útil para confirmar agenesia, ectopia ou disormonogênese. A realização desses exames não deve atrasar o início do tratamento.
6. Manejo e Tratamento
O tratamento é uma urgência e deve ser iniciado imediatamente após a coleta de sangue para os exames confirmatórios, sem aguardar os resultados. O objetivo é normalizar os níveis de T4 livre o mais rápido possível, idealmente nas primeiras duas semanas de tratamento, e o TSH no primeiro mês.
Fármaco de escolha: Levotiroxina sódica (L-T4), por via oral, em dose única diária.
Dose inicial: A dose recomendada é de 10 a 15 mcg/kg/dia. Doses mais altas são utilizadas nos casos mais graves para garantir a rápida normalização hormonal.
Administração: O comprimido deve ser macerado e administrado com uma pequena quantidade de água, leite materno ou fórmula, preferencialmente em jejum para otimizar a absorção. Deve-se evitar a administração concomitante com fórmulas de soja, ferro ou fibras, que podem diminuir a absorção.
7. Complicações
A principal complicação do HC não tratado ou tratado inadequadamente é o déficit neurocognitivo permanente, incluindo retardo mental grave. Outras complicações incluem baixa estatura, atraso na puberdade, surdez neurossensorial e alterações motoras como ataxia e incoordenação. O tratamento excessivo pode levar a craniossinostose e alterações de comportamento.
8. Prognóstico e Seguimento
Com o diagnóstico precoce pela triagem neonatal e tratamento adequado, a maioria das crianças atinge crescimento e desenvolvimento intelectual dentro da normalidade. Fatores como a gravidade inicial da doença e a rapidez no início e adequação do tratamento influenciam o prognóstico neurológico.
Monitoramento laboratorial: O controle com TSH e T4 livre deve ser frequente:
2 a 4 semanas após o início do tratamento.
A cada 1-2 meses nos primeiros 6 meses de vida.
A cada 3-4 meses entre 6 meses e 3 anos de idade.
Posteriormente, a cada 6-12 meses até o final do crescimento.
Metas terapêuticas: Manter o T4 livre na metade superior da faixa de normalidade para a idade e o TSH dentro dos valores de referência.
Reavaliação aos 3 anos: Em casos sem etiologia definida ou com suspeita de HC transitório, pode-se considerar a suspensão da levotiroxina por 30 dias após os 3 anos de idade para reavaliar a função tireoidiana e confirmar a necessidade de tratamento permanente.
9. Prevenção
A prevenção primária do hipotireoidismo congênito não é possível na maioria dos casos. A prevenção secundária, focada em evitar as sequelas neurológicas, é realizada de forma altamente eficaz através dos programas de triagem neonatal universal, que permitem o diagnóstico e o início do tratamento em tempo hábil.
Referências
ALVES, C. A. D. et al. Hipotireoidismo Congênito: Triagem Neonatal. Documento Científico do Departamento Científico de Endocrinologia. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Pediatria, 2018.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas: Hipotireoidismo Congênito. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2021.
LÉGER, J. et al. Congenital hypothyroidism: a 2020-2021 consensus guidelines update: an ENDO-European reference network initiative endorsed by the European Society for Paediatric Endocrinology and the European Society for Endocrinology. Endocrine, v. 73, n. 1, p. 1-40, 2021.
MACIEL, L. M. Z. et al. Hipotireoidismo congênito: recomendações do Departamento de Tireoide da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia, v. 57, n. 3, p. 184-192, 2013.
ROSE, S. R. et al. Update of newborn screening and therapy for congenital hypothyroidism. Pediatrics, v. 117, n. 6, p. 2290-2303, 2006.
Tratamento
1. Orientações Gerais ao Prescritor
HC é urgência terapêutica: coletar TSH/T4L venosos e iniciar LT4 na mesma visita. Objetivo: normalizar T4L em 1–2 semanas e TSH no 1º mês. Preferir comprimido de LT4 (maior estabilidade). Separar LT4 de ferro, cálcio, fórmulas de soja e quelantes por 4 horas. Em suspeita de HC central/hipopituitarismo, iniciar hidrocortisona antes/junto da LT4.
2. Prescrição para Avaliação Inicial / Admissão
Exames imediatos (após triagem alterada): TSH e T4L séricos; glicemia, sódio, potássio e cortisol 8–9h se suspeita de central; coleta antes da primeira dose de LT4.
Imagem (não adiar LT4): Ultrassom de tireoide (prioritário); cintilografia pode ser programada.
Acompanhamento: retorno em 2–4 semanas com TSH/T4L.
3. Esquemas Terapêuticos
3.1. Reposição com Levotiroxina (LT4) — Primeira escolha
Levotiroxina sódica comprimido (macerar e administrar com 5–10 mL de água/leite materno, em jejum, 30 min antes da primeira mamada):
Dose inicial: 10–15 mcg/kg/dia, VO, 1x/dia (usar 12–15 mcg/kg/dia se T4L muito baixo/indetectável).
Exemplo (RN 3,5 kg): 50 mcg/dia (≈14 mcg/kg/dia) — Levotiroxina 50 mcg, VO, 1x/dia.
Ajustes por faixa etária (manutenção, orientar por TSH/T4L):
3–6 meses: 8–10 mcg/kg/dia
6–12 meses: 6–8 mcg/kg/dia
1–5 anos: 5–6 mcg/kg/dia
6–12 anos: 4–5 mcg/kg/dia
>12 anos (pós-púbere): 1,6–1,7 mcg/kg/dia
Observações práticas:
Evitar suspensões manipuladas quando possível.
Separar de ferro, cálcio, suplementos, antiácidos/bile sequestrants e fórmulas de soja por ≥4 h.
3.2. Suspeita de HC Central / Hipopituitarismo
Hidrocortisona VO (reposição): 8–10 mg/m²/dia, divididos 3x/dia, iniciar antes ou junto com a primeira dose de LT4 se insuficiência adrenal não puder ser excluída.
Se doente grave/estresse: Hidrocortisona 50–100 mg/m²/dia EV/IM dividida 3–4x/dia, depois reduzir para reposição.
Após estabilização, prosseguir com LT4 como acima e investigação de outras deficiências hipofisárias.
4. Monitoramento da Terapia
Clínico: ganho ponderoestatural, perímetro cefálico, sono/irritabilidade, evacuações, desenvolvimento neuropsicomotor; técnica de administração e adesão.
Laboratorial (TSH/T4L): 2–4 semanas após início/ajuste; mensal–6/8 semanas até 6 meses; a cada 3–4 meses dos 6–36 meses; a cada 6–12 meses após; 4–6 semanas após qualquer mudança de dose.
Metas: T4L metade superior da referência e TSH normal.
Ajustes usuais: incrementos/decrementos de 12,5–25 mcg; repetir TSH/T4L em 4 semanas.
5. Manejo de Efeitos Adversos/Complicações
Subtratamento: TSH elevado e/ou T4L baixo → aumentar LT4 em 12,5–25 mcg/dia e reavaliar em 4 semanas.
Supertratamento (tireotoxicose iatrogênica): irritabilidade, taquicardia, sudorese, queda ponderal, T4L alto/TSH suprimido → pausar LT4 por 3–5 dias e reiniciar com –25% da dose; repetir exames em 4 semanas.
Interações/absorção inadequada: revisar horários; garantir jejum; separar de ferro/cálcio/soja/antiácidos.
6. Orientações de Alta e para a Família
Sobre a doença: deficiência de hormônio essencial ao cérebro e crescimento; tratamento diário e contínuo.
Administração correta: dar o comprimido macerado, em pouca água/leite; evitar diluir na mamadeira cheia; aguardar 30 min para amamentar.
Sinais de alerta: irritabilidade importante/taquicardia/diarreia (excesso); sonolência excessiva/constipação recidivante/hipotermia (falta).
Seguimento: consulta e TSH/T4L em 2–4 semanas; manter agendas com pediatria e endocrinologia.
7. Critérios para Hospitalização
Instabilidade clínica (hipotermia, bradicardia, dificuldade respiratória), comorbidades graves (p.ex. cardiopatia congenital) ou suspeita de insuficiência adrenal/hipopituitarismo com necessidade de estabilização e cobertura parenteral de esteroide.
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