Toxoplasmose Congênita
Resumo
1. Definição e Fisiopatologia
A Toxoplasmose Congênita é uma infecção sistêmica causada pela transmissão transplacentária do protozoário Toxoplasma gondii de uma mãe que adquiriu a infecção primária durante a gestação para o seu feto. É uma das principais causas de danos neurológicos e oculares infecciosos em recém-nascidos, com um espectro clínico que vai desde formas assintomáticas ao nascimento até quadros devastadores com sequelas permanentes.
A dinâmica da transmissão vertical é paradoxal:
Categoria
Neonatal > Infecções Congênitas TORCHS > Toxoplasmose Congênita
Conduta Completa
1. Definição e Fisiopatologia
A Toxoplasmose Congênita é uma infecção sistêmica causada pela transmissão transplacentária do protozoário Toxoplasma gondii de uma mãe que adquiriu a infecção primária durante a gestação para o seu feto. É uma das principais causas de danos neurológicos e oculares infecciosos em recém-nascidos, com um espectro clínico que vai desde formas assintomáticas ao nascimento até quadros devastadores com sequelas permanentes.
A dinâmica da transmissão vertical é paradoxal:
Risco de Transmissão: Aumenta com o avançar da idade gestacional (baixo no 1º trimestre, ~15%; alto no 3º trimestre, >60%).
Gravidade da Doença: É inversamente proporcional à idade gestacional. Infecções adquiridas no início da gravidez são mais graves, podendo levar a aborto, óbito fetal ou sequelas neurológicas severas. Infecções adquiridas no final da gestação resultam mais frequentemente em formas subclínicas, embora o risco de desenvolver lesões oculares tardiamente permaneça alto.
O T. gondii atravessa a placenta, dissemina-se pelo corpo do feto e demonstra um tropismo acentuado pelo sistema nervoso central (SNC) e pela retina. A infecção causa uma intensa resposta inflamatória, com focos de necrose tecidual que, ao cicatrizarem, formam as lesões características da doença: as calcificações intracranianas e as cicatrizes de coriorretinite.
2. Rastreamento e Diagnóstico Materno
A prevenção da toxoplasmose congênita depende do rastreamento sorológico pré-natal.
Triagem: Todas as gestantes devem ser testadas (IgG e IgM para toxoplasmose) no primeiro trimestre.
Interpretação:
IgG Reagente, IgM Não Reagente: Imunidade prévia, sem risco de transmissão (exceto em casos raros de reativação por imunossupressão grave).
IgG e IgM Não Reagentes: Suscetível. A gestante deve receber orientações de prevenção primária e repetir a sorologia trimestralmente.
IgG e/ou IgM Reagentes: Suspeita de infecção recente. É necessário aprofundar a investigação com o Teste de Avidez de IgG. Uma alta avidez no início da gestação praticamente exclui infecção aguda, enquanto uma baixa avidez sugere fortemente uma infecção recente, indicando a necessidade de tratamento materno para reduzir a transmissão vertical.
3. Manifestações Clínicas do Recém-Nascido
A maioria dos recém-nascidos infectados (>75%) é assintomática ao nascimento. A doença pode se manifestar de forma subclínica, com sequelas aparecendo meses ou anos depois.
Forma Grave (Neurotoxoplasmose): É a forma clássica, mas rara. Caracteriza-se pela Tríade de Sabin:
1. Coriorretinite: Lesões necróticas na retina, geralmente bilaterais, que evoluem para cicatrizes pigmentadas. É a manifestação mais comum da doença congênita.
2. Calcificações Intracranianas: Tipicamente difusas e esparsas pelo parênquima cerebral.
3. Hidrocefalia: Obstrutiva, causada pela inflamação e estenose do aqueduto de Sylvius.
Manifestações Sistêmicas: Podem incluir hepatoesplenomegalia, icterícia, petéquias (por trombocitopenia), anemia, febre e erupção cutânea maculopapular.
4. Diagnóstico no Recém-Nascido
A investigação é mandatória para todo RN filho de mãe com infecção aguda suspeita ou confirmada na gestação.
Diagnóstico Sorológico:
IgM e IgA Específicas: A detecção de IgM ou IgA anti-Toxoplasma no sangue do RN é diagnóstica de infecção congênita, pois estes anticorpos não atravessam a placenta.
IgG Específica: A presença de IgG isoladamente não confirma o diagnóstico, pois pode representar apenas a passagem de anticorpos maternos. A infecção é confirmada se os títulos de IgG persistirem positivos após os 12 meses de vida.
Investigação Complementar Obrigatória:
1. Exame de Fundo de Olho (Fundoscopia): Essencial para detectar a coriorretinite, que pode estar presente mesmo em bebês assintomáticos. Deve ser realizado por um oftalmologista experiente.
2. Neuroimagem: O ultrassom transfontanelar pode detectar hidrocefalia, mas a Tomografia Computadorizada (TC) de Crânio sem contraste é superior para visualizar as calcificações intracranianas. A Ressonância Magnética (RM) é útil para avaliar a extensão da lesão da substância branca.
3. Punção Lombar e Análise do Líquor (LCR): Essencial para o diagnóstico de neurossífilis. Avalia-se celularidade, proteinorraquia e a presença do parasita por PCR. Alterações como pleocitose e hiperproteinorraquia são comuns.
4. Hemograma Completo: Para avaliar a presença de anemia e trombocitopenia.
5. Manejo e Tratamento
Todo recém-nascido com toxoplasmose congênita confirmada ou altamente suspeita deve ser tratado por 12 meses. O objetivo é eliminar o parasita, limitar a progressão da doença e reduzir o risco de sequelas tardias.
Esquema Terapêutico Padrão (Tríplice):
1. Pirimetamina: Um antiparasitário potente, pilar do tratamento.
2. Sulfadiazina: Um antibiótico que age em sinergia com a pirimetamina.
3. Ácido Folínico (Leucovorina): Essencial para proteger a medula óssea da toxicidade da pirimetamina. NÃO é ácido fólico comum.
Uso de Corticosteroides (Prednisona): Indicado em situações específicas de inflamação grave:
Coriorretinite ativa com ameaça à visão (lesão macular).
Hiperproteinorraquia no LCR (> 1 g/dL).
6. Monitoramento e Seguimento
Monitoramento do Tratamento: Devido à alta toxicidade do esquema, é obrigatório o monitoramento com hemograma completo seriado (semanal no primeiro mês, depois quinzenal e mensal) para detectar supressão da medula óssea (anemia, leucopenia, plaquetopenia).
Seguimento Oftalmológico: É vitalício. As cicatrizes da coriorretinite podem reativar em qualquer momento da vida, especialmente na adolescência e início da vida adulta, causando perda visual progressiva.
Seguimento Neurológico e Audiológico: Avaliações periódicas do desenvolvimento neuropsicomotor e da audição são necessárias para detectar e intervir precocemente em possíveis sequelas.
7. Prevenção
Prevenção Primária: Orientação às gestantes soronegativas sobre medidas de higiene e segurança alimentar: não comer carnes cruas ou mal passadas, lavar bem frutas e vegetais, usar luvas para jardinagem e evitar o contato com fezes de gatos.
Prevenção Secundária (Transmissão Vertical): Tratamento da gestante com infecção aguda. A espiramicina é usada para reduzir a passagem do parasita pela placenta. Se a infecção fetal for confirmada (via amniocentese), o tratamento materno passa a ser o esquema tríplice (Pirimetamina, Sulfadiazina e Ácido Folínico).
8. Referências Bibliográficas
1. Ministério da Saúde (Brasil). (2018). Protocolo de Notificação e Investigação: Toxoplasmose gestacional e congênita. (Referência nacional essencial para os fluxogramas de diagnóstico e notificação).
2. Maldonado, Y. A., & Read, J. S. (2017). Diagnosis, Treatment, and Prevention of Congenital Toxoplasmosis in the United States. Pediatrics, 139(2), e20163860. (Diretriz da Academia Americana de Pediatria, um guia clínico completo).
3. McLeod, R., Boyer, K., Karrison, T., et al. (2006). Outcome of treatment for congenital toxoplasmosis, 1981-2004: the National Collaborative Chicago-Based, Congenital Toxoplasmosis Study. Clinical Infectious Diseases, 42(10), 1383-1394. (Estudo de coorte clássico e um dos mais importantes sobre os desfechos do tratamento).
4. Peyron, F., L’ollivier, C., Wallon, M., et al. (2017). Congenital toxoplasmosis: a prospective, multicenter, and observational study of 238 pregnancies. Pediatric Infectious Disease Journal, 36(7), 649-654.
5. Pomeroy, K., & Kives, S. (2020). Toxoplasmosis in Pregnancy. Journal of Obstetrics and Gynaecology Canada, 42(2), 224-230.
6. Volpe, J. J. (2017). Volpe's Neurology of the Newborn (6th ed.). Elsevier. (Capítulo sobre infecções congênitas fornece uma visão aprofundada da neurotoxoplasmose).
Tratamento
Orientações ao Prescritor
O tratamento da toxoplasmose congênita é prolongado (12 meses), complexo e requer monitoramento rigoroso da toxicidade medicamentosa, especialmente a mielo-supressão. A colaboração com especialistas (Infectologista, Oftalmologista) é fundamental. A adesão familiar ao tratamento é crucial para o sucesso terapêutico.
Prescrição para Investigação Diagnóstica (RN Suspeito)
1. Solicitar Sorologias para Toxoplasmose no RN: Coletar sangue periférico para IgG, IgM e IgA anti-Toxoplasma.
2. Solicitar Hemograma completo com contagem de plaquetas.
3. Realizar Punção Lombar e enviar LCR para análise completa (celularidade, bioquímica) e PCR para Toxoplasma gondii, se disponível.
4. Solicitar Tomografia de Crânio sem contraste para pesquisa de calcificações intracranianas.
5. Solicitar Avaliação Oftalmológica com fundoscopia, a ser realizada por oftalmologista.
Prescrição do Tratamento Específico (Esquema Padrão - 12 meses)
1. Pirimetamina
Dose:
Ataque: 2 mg/kg/dia, VO, uma vez ao dia, por 2 dias.
Manutenção: 1 mg/kg/dia, VO, uma vez ao dia.
Observação: É a droga mais tóxica do esquema. Deve ser manipulada em farmácia para ajuste fino da dose.
2. Sulfadiazina
Dose: 100 mg/kg/dia, VO, dividida em 2 doses (de 12/12 horas).
Observação: Manter boa hidratação para prevenir cristalúria.
3. Ácido Folínico (Leucovorina)
Dose: 10 mg, VO, administrado 3 vezes por semana (ex: segundas, quartas e sextas).
Observação CRÍTICA: Este medicamento é obrigatório e não pode ser substituído por ácido fólico comum. Ele protege a medula óssea dos efeitos tóxicos da pirimetamina.
Exemplo de Prescrição para um RN de 4 kg:
1. Pirimetamina (manipulada em suspensão) 4 mg, VO, 1 vez ao dia.
2. Sulfadiazina (manipulada em suspensão) 200 mg, VO, de 12/12 horas.
3. Ácido Folínico 10 mg, VO, 3 vezes por semana (seg/qua/sex).
Prescrição de Corticosteroides (se indicado)
Indicações: Coriorretinite ativa com ameaça à mácula ou LCR com proteinorraquia > 1 g/dL.
Droga de Escolha: Prednisona.
Dose: 1 mg/kg/dia, VO, dividida em 2 doses (de 12/12 horas).
Duração: Manter até a resolução do quadro inflamatório agudo (geralmente algumas semanas), com desmame gradual.
Exemplo de Prescrição:
1. Prednisona 2 mg, VO, de 12/12 horas.
Prescrição para Monitoramento Laboratorial do Tratamento
1. Hemograma completo com contagem de plaquetas:
Frequência: Semanalmente no primeiro mês; quinzenalmente no 2º e 3º mês; e mensalmente a seguir, durante todo o tratamento.
2. Transaminases (TGO/TGP):
Frequência: Mensalmente.
Manejo da Toxicidade Hematológica
Se Neutrófilos < 1.000/mm³ ou Plaquetas < 100.000/mm³:
1. Aumentar a dose de Ácido Folínico para 10 mg/dia (administração diária).
Se Neutrófilos < 500/mm³ ou Plaquetas < 50.000/mm³:
1. Suspender a Pirimetamina temporariamente.
2. Manter a Sulfadiazina e o Ácido Folínico (dose diária).
3. Monitorar hemograma 2x por semana e reintroduzir a pirimetamina quando houver recuperação medular.
Prescrição de Alta e Orientações para a Família
1. Fornecer receita e orientações claras sobre a manipulação, o armazenamento e a administração das medicações.
2. Entregar um cronograma escrito com todas as datas de consultas de seguimento (pediatra, oftalmologista) e coletas de exames laboratoriais.
3. Orientar sobre os sinais de alerta para toxicidade medicamentosa: palidez, febre, surgimento de manchas roxas (petéquias) ou icterícia.
4. Enfatizar a necessidade de seguimento oftalmológico por toda a vida, mesmo após o término do tratamento.
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