Choque Hipovolêmico
Resumo
1. Definição e Fisiopatologia
O Choque Hipovolêmico é uma síndrome de falência circulatória aguda causada por uma redução crítica do volume intravascular, levando a uma entrega inadequada de oxigênio aos tecidos. Em pediatria, é a causa mais comum de choque, sendo a desidratação por gastroenterite a etiologia predominante em todo o mundo, seguida por perdas hemorrágicas.
A fisiopatologia central é a diminuição do retorno venoso ao coração, o que reduz a pré-carga e, consequentemente, o débito
Categoria
Urgências e Emergências > Emergências Circulatórias (Choque) > Choque Hipovolêmico
Conduta Completa
1. Definição e Fisiopatologia
O Choque Hipovolêmico é uma síndrome de falência circulatória aguda causada por uma redução crítica do volume intravascular, levando a uma entrega inadequada de oxigênio aos tecidos. Em pediatria, é a causa mais comum de choque, sendo a desidratação por gastroenterite a etiologia predominante em todo o mundo, seguida por perdas hemorrágicas.
A fisiopatologia central é a diminuição do retorno venoso ao coração, o que reduz a pré-carga e, consequentemente, o débito cardíaco. Em resposta, o organismo dispara uma potente resposta neuro-hormonal para preservar a perfusão de órgãos nobres (cérebro e coração):
1. Ativação Simpática: Liberação de catecolaminas (adrenalina, noradrenalina) que causam taquicardia (para tentar manter o débito cardíaco) e vasoconstrição periférica (para centralizar o fluxo sanguíneo).
2. Ativação do Sistema Renina-Angiotensina-Aldosterona: Promove vasoconstrição e retenção de sódio e água para tentar restaurar o volume.
Esses mecanismos criam o quadro clínico do choque compensado, onde a pressão arterial ainda é mantida. A criança estará taquicárdica, com extremidades frias, pulsos periféricos fracos e enchimento capilar lentificado (>2 segundos). A hipotensão é um sinal tardio e ominoso em pediatria, indicando a falha desses mecanismos e a transição para o choque descompensado, com risco iminente de parada cardiorrespiratória.
2. Causas Principais
Perdas Não Hemorrágicas:
Gastrointestinais: Gastroenterite (diarreia e vômitos) é a principal causa.
Renais: Diurese osmótica (cetoacidose diabética), diabetes insipidus.
Cutâneas/Terceiro Espaço: Grandes queimados, sepse com extravasamento capilar.
Perdas Hemorrágicas:
Trauma: A causa mais comum de choque hemorrágico.
Não Traumáticas: Sangramento gastrointestinal, complicações cirúrgicas.
3. Avaliação Clínica e Diagnóstico
O diagnóstico é eminentemente clínico e deve ser feito rapidamente.
Avaliação Primária (ABCDE)
A (Airway): Via aérea está pérvia?
B (Breathing): Qual o padrão respiratório? Taquipneia é comum como resposta à acidose metabólica.
C (Circulation): Esta é a avaliação chave.
Frequência Cardíaca: Taquicardia é o sinal mais precoce.
Pulsos: Comparar pulsos centrais (fortes) com periféricos (fracos).
Perfusão Cutânea: Tempo de enchimento capilar > 2s, extremidades frias, pele mosqueada (moteada).
Pressão Arterial: A hipotensão é tardia.
D (Disability): Nível de consciência. Irritabilidade inicial pode progredir para letargia e coma.
E (Exposure): Procurar por sinais de desidratação (mucosas secas, olhos encovados), trauma ou sangramento.
Classificação da Gravidade (Baseada no ATLS para Choque Hemorrágico)
Classe I (<15% de perda): Quase sem sinais, ansiedade leve.
Classe II (15-30%): Taquicardia, taquipneia, pulsos periféricos diminuídos, enchimento capilar lento. PA normal.
Classe III (30-40%):0 Taquicardia e taquipneia acentuadas, hipotensão, alteração do estado mental, oligúria.
Classe IV (>40%): Choque profundo, risco iminente de PCR.
Exames Complementares
Gasometria com Lactato: Essencial. Revela acidose metabólica com ânion-gap aumentado e lactato elevado, que é o principal marcador de hipoperfusão.
Hemograma: O hematócrito pode estar elevado (hemoconcentração na desidratação) ou baixo (hemorragia, após reposição volêmica).
Eletrólitos, Glicemia, Função Renal.
4. Manejo e Tratamento
O tratamento deve ser imediato, agressivo e focado na restauração do volume intravascular.
1. Acesso Vascular
Obter dois acessos venosos periféricos de grosso calibre o mais rápido possível.
Se houver falha após 2 tentativas ou 90 segundos em uma criança em choque, a via intraóssea (IO) é a indicação formal e deve ser estabelecida sem demora.
2. Ressuscitação Volêmica
Fluido de Escolha: Cristaloides isotônicos (Soro Fisiológico 0,9% ou Ringer Lactato).
Dose: Bolus de 20 mL/kg, infundido rapidamente em 5 a 20 minutos.
Reavaliação: Após cada bolus, reavaliar sistematicamente a frequência cardíaca, a perfusão, o nível de consciência e a pressão arterial.
Repetição: Se os sinais de choque persistirem, administrar novos bolus de 20 mL/kg, podendo chegar a 40-60 mL/kg na primeira hora.
Choque Hemorrágico: Após o terceiro bolus de cristaloide (ou antes, se a hemorragia for maciça), a terapia deve ser trocada para hemoderivados (concentrado de hemácias, plasma e plaquetas, na proporção de 1:1:1).
3. Terapia Vasoativa
O uso de drogas vasoativas no choque puramente hipovolêmico é raro. É indicado apenas se houver hipotensão refratária à ressuscitação volêmica agressiva, o que sugere a transição para um estado de choque distributivo (ex: choque hemorrágico descompensado) ou o desenvolvimento de disfunção miocárdica.
Metas Terapêuticas
Normalização da frequência cardíaca.
Pulsos periféricos palpáveis e fortes.
Enchimento capilar < 2 segundos com extremidades quentes.
Débito urinário > 1 mL/kg/hora.
Melhora do estado mental.
Normalização do lactato e da acidose.
5. Prognóstico
O prognóstico do choque hipovolêmico é excelente se reconhecido e tratado precocemente. Atrasos no diagnóstico e na reposição volêmica aumentam drasticamente a mortalidade e o risco de lesão de órgãos-alvo, como a necrose tubular aguda nos rins e a lesão cerebral hipóxico-isquêmica.
6. Referências Bibliográficas
American College of Surgeons Committee on Trauma. (2018). Advanced Trauma Life Support (ATLS) Student Course Manual (10th ed.). (A principal referência mundial para o manejo do choque hemorrágico no trauma).
Maitland, K., et al. (2011). Mortality after fluid bolus in African children with severe infection. The New England Journal of Medicine, 364(26), 2483-2495. (Estudo FEAST, um marco que questionou a ressuscitação volêmica liberal em crianças febris na África, gerando um intenso debate e refinando as indicações, embora seu foco principal não seja o choque hipovolêmico clássico por desidratação).
Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). (2019). Choque em pediatria. Documento Científico. (Diretriz nacional essencial).
World Health Organization (WHO). (2013). Pocket book of hospital care for children: Guidelines for the management of common childhood illnesses (2nd ed.). (Fornece diretrizes práticas e globais para o manejo da desidratação grave e choque).
Long, E., Babl, F., & Dalziel, S. (2018). Fluid resuscitation for paediatric sepsis: a survey of senior emergency doctors in Australia and New Zealand. Emergency Medicine Australasia, 30(3), 389-394. (Demonstra a prática clínica e a aplicação das diretrizes em um cenário de alta renda).
Houston, L. J., & Scerbo, M. (2021). Fluid and Blood Resuscitation in Pediatric Trauma. Current Anesthesiology Reports, 11*, 258-265. (Revisão atualizada e focada no choque hemorrágico pediátrico).
Tratamento
Orientações ao Prescritor
O choque hipovolêmico é uma emergência tempo-dependente. A prioridade absoluta é a restauração do volume intravascular. As prescrições devem ser focadas na ação rápida. Não espere pela hipotensão para agir. A taquicardia e a má perfusão são os gatilhos para o início da terapia agressiva.
Prescrição de Ação Imediata (Sala de Emergência)
1. Monitorização Contínua: Instalar monitor multiparamétrico (ECG, FC, FR, SatO₂, PNI).
2. Oferecer Oxigênio de Alto Fluxo (máscara não reinalante) para maximizar a oferta de O₂ aos tecidos.
3. Obter Acesso Vascular Imediato:
Tentar dois acessos venosos periféricos de grosso calibre (ex: Abocath® 22G ou 20G).
Se não for possível obter acesso IV em 60-90 segundos, proceder imediatamente para Acesso Intraósseo (IO) na tíbia proximal.
4. Coletar Exames de Urgência: Gasometria venosa com lactato, glicemia capilar, eletrólitos, função renal e hemograma.
Prescrição para Ressuscitação Volêmica (Não Hemorrágico)
Indicação: Choque por desidratação (gastroenterite) ou perdas para terceiro espaço.
Fluido de Escolha: Soro Fisiológico 0,9%.
Exemplo de Prescrição Sequencial:
1. Fase 1 (0-15 min): Soro Fisiológico 0,9%, 20 mL/kg, IV, em bolus rápido (infundir em 5-10 minutos).
2. Reavaliar imediatamente a FC, perfusão e PA.
3. Fase 2 (15-30 min): Se mantiver sinais de choque, administrar segundo bolus de Soro Fisiológico 0,9%, 20 mL/kg, IV, em bolus.
4. Reavaliar novamente.
5. Fase 3 (30-60 min): Se ainda instável, administrar terceiro bolus de Soro Fisiológico 0,9%, 20 mL/kg, IV, em bolus.
6. Após 60 mL/kg, se o paciente permanecer em choque, admitir em UTI Pediátrica e considerar o início de drogas vasoativas.
Prescrição para Ressuscitação Volêmica (Hemorrágico)
Indicação: Choque por trauma ou sangramento ativo.
Exemplo de Prescrição Sequencial:
1. Iniciar com bolus de Cristaloide: Soro Fisiológico 0,9%, 20 mL/kg, IV, em bolus.
2. Controle da Hemorragia: Aplicar compressão direta em sangramentos externos.
3. Ativar Protocolo de Transfusão Maciça: Se o paciente não estabilizar após o primeiro bolus de cristaloide ou se a hemorragia for visivelmente grave.
4. Prescrever Hemoderivados:
Concentrado de Hemácias (tipo O negativo, se o tipo sanguíneo não for conhecido): 10-15 mL/kg, IV.
Plasma Fresco Congelado: 10-15 mL/kg, IV.
Concentrado de Plaquetas: 10-15 mL/kg, IV.
Objetivo: Manter a proporção de 1:1:1 entre hemácias, plasma e plaquetas.
Prescrição de Drogas Adjuvantes
Correção de Distúrbios Metabólicos:
Hipoglicemia: Glicose 25%, 2 mL/kg, IV, em bolus.
Hipocalcemia (em transfusão maciça): Gluconato de Cálcio 10%, 0,5-1 mL/kg, IV, lento.
Vasopressores (para choque refratário):
Indicação: Hipotensão que não responde à reposição volêmica agressiva.
Prescrição:* Iniciar infusão contínua de Norepinefrina ou Epinefrina (0.05-0.1 mcg/kg/min), preferencialmente em acesso central.
Metas Terapêuticas e Monitoramento (a serem prescritas)
1. Monitorar e registrar sinais vitais e tempo de enchimento capilar a cada 15 minutos na primeira hora.
2. Instalar sonda vesical de demora para controle rigoroso do débito urinário (meta: > 1 mL/kg/h).
3. Repetir gasometria com lactato 1 hora após o início da ressuscitação para avaliar a resposta terapêutica (meta: clearance de lactato).
4. Manter Pressão Arterial Média (PAM) acima do percentil 5 para a idade.
5. Manter aquecido com manta térmica para evitar hipotermia.
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