Cetoacidose Diabética (CAD)
Resumo
Definição e Fisiopatologia
A Cetoacidose Diabética (CAD) é uma emergência metabólica complexa, sendo a complicação aguda mais grave do Diabetes Mellitus tipo 1 (DM1). É definida pela tríade bioquímica de:
Hiperglicemia: Glicemia > 200 mg/dL.
Acidose Metabólica: pH venoso < 7,3 ou bicarbonato sérico < 15 mEq/L.
Cetose: Presença de corpos cetônicos no sangue (beta-hidroxibutirato ≥ 3 mmol/L) ou na urina.
A fisiopatologia é desencadeada pela deficiência profunda de insulina, seja absoluta
Categoria
Urgências e Emergências > Emergências Metabólicas > Cetoacidose Diabética (CAD)
Conduta Completa
Definição e Fisiopatologia
A Cetoacidose Diabética (CAD) é uma emergência metabólica complexa, sendo a complicação aguda mais grave do Diabetes Mellitus tipo 1 (DM1). É definida pela tríade bioquímica de:
Hiperglicemia: Glicemia > 200 mg/dL.
Acidose Metabólica: pH venoso < 7,3 ou bicarbonato sérico < 15 mEq/L.
Cetose: Presença de corpos cetônicos no sangue (beta-hidroxibutirato ≥ 3 mmol/L) ou na urina.
A fisiopatologia é desencadeada pela deficiência profunda de insulina, seja absoluta (no diagnóstico de DM1) ou relativa (durante uma doença em um paciente diabético conhecido), associada a um aumento dos hormônios contrarregulatórios (glucagon, cortisol, catecolaminas, GH).
Essa combinação hormonal leva a dois processos centrais:
Hiperglicemia Grave: A falta de insulina impede a captação de glicose pelas células e, ao mesmo tempo, os hormônios contrarregulatórios promovem uma produção hepática maciça de glicose (gliconeogênese e glicogenólise). A hiperglicemia resultante causa uma diurese osmótica, levando à desidratação grave e perda de eletrólitos.
Cetogênese Acelerada: Na ausência de insulina, o corpo não consegue usar a glicose como energia e passa a quebrar gordura de forma descontrolada (lipólise). Isso libera uma grande quantidade de ácidos graxos no fígado, que são convertidos em corpos cetônicos (acetoacetato e beta-hidroxibutirato). Esses cetoácidos se acumulam no sangue, consumindo o bicarbonato e gerando uma acidose metabólica com ânion-gap aumentado.
Fatores Precipitantes
Diagnóstico Inicial (Debut) de DM1: É a causa em 20-40% dos casos.
Infecções: São o principal gatilho em pacientes com diagnóstico prévio, aumentando a resistência à insulina.
Má Adesão à Insulinoterapia: Omissão de doses ou uso de insulina com validade vencida.
Estresse Fisiológico: Cirurgias, traumas ou outras doenças agudas.
Avaliação Clínica e Diagnóstico
O diagnóstico é suspeitado clinicamente e confirmado laboratorialmente.
História Clínica: Poliúria, polidipsia, polifagia e perda de peso nas semanas anteriores. No quadro agudo, surgem náuseas, vômitos, dor abdominal (que pode simular um abdome agudo) e alteração do nível de consciência.
Exame Físico:
Sinais de Desidratação: Mucosas secas, turgor cutâneo diminuído, olhos encovados, taquicardia e, em casos graves, hipotensão (choque hipovolêmico).
Sinais de Acidose: Respiração de Kussmaul (respirações rápidas e profundas, uma tentativa de compensar a acidose metabólica eliminando CO₂) e hálito cetônico (odor de frutas).
Estado Neurológico: Varia de alerta a sonolento, torporoso ou em coma, dependendo da gravidade.
Diagnóstico Laboratorial: Confirmação da tríade (glicemia, pH/bicarbonato, cetonas). É crucial calcular o sódio corrigido [Na Corrigido = Na Medido + 1,6 x ((Glicemia - 100)/100)], pois a hiperglicemia causa uma pseudohiponatremia dilucional.
Manejo e Tratamento
O tratamento da CAD é uma emergência que deve ser conduzida em ambiente de terapia intensiva. Os pilares são: 1) Fluidoterapia, 2) Insulinoterapia e 3) Correção dos distúrbios eletrolíticos.
1. Fluidoterapia Cuidadosa
Objetivo: Restaurar o volume circulatório e a perfusão renal, e iniciar a correção gradual da desidratação. A correção deve ser lenta e planejada para 48 horas para minimizar o risco de edema cerebral.
Fase Inicial: Se houver choque, administrar um bolus de Soro Fisiológico 0,9% 10-20 mL/kg em 1 hora.
Fase de Re-hidratação: Calcular o déficit de fluido (geralmente estimado em 5-10%) e somar às necessidades de manutenção. Infundir este volume total de forma contínua ao longo de 48 horas.
2. Insulinoterapia
Objetivo: Cessar a produção de cetonas, reverter a acidose e reduzir gradualmente a glicemia.
Início: A insulina NÃO deve ser iniciada antes da primeira hora de hidratação. Começar a insulina em um paciente gravemente desidratado pode piorar o choque.
Droga e Dose: Insulina Regular em infusão contínua endovenosa, na dose de 0,05 a 0,1 UI/kg/hora. NÃO se faz bolus de insulina em crianças pelo risco de edema cerebral.
Meta: Redução da glicemia em 50-100 mg/dL por hora.
3. Manejo dos Eletrólitos
Potássio (K+): Este é o manejo eletrolítico mais crítico. Apesar do K+ sérico inicial poder estar normal ou até alto, o estoque corporal total de potássio está sempre depletado. A insulina e a correção da acidose farão com que o potássio entre rapidamente nas células, causando uma hipocalemia grave e potencialmente fatal (arritmias).
Conduta: A reposição de potássio deve ser iniciada logo após o início da insulinoterapia (desde que o paciente esteja urinando e o K+ sérico não esteja > 5,5 mEq/L).
Bicarbonato: Seu uso é controverso e não é recomendado rotineiramente. Está reservado apenas para casos de acidose extremamente grave (pH < 6,9) com instabilidade hemodinâmica, pois sua administração paradoxalmente pode piorar a acidose no SNC.
Edema Cerebral: A Complicação Mais Temida
Fisiopatologia: Acredita-se que seja causado por uma queda muito rápida da osmolaridade plasmática durante a correção da hiperglicemia e da desidratação.
Sinais de Alerta: Cefaleia, vômitos, alteração súbita do padrão neurológico, bradicardia, hipertensão (Tríade de Cushing).
Tratamento: É uma emergência máxima. Medidas imediatas incluem a redução da infusão de fluidos e a administração de agentes hiperosmolares (Manitol ou Solução Salina Hipertônica a 3%).
Transição para Insulina Subcutânea
A terapia endovenosa é mantida até a resolução da cetoacidose (pH > 7,3, bicarbonato > 15 mEq/L, ânion-gap normalizado), e não apenas da hiperglicemia. A transição é feita com sobreposição das infusões para evitar a recorrência da cetose.
Referências Bibliográficas
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Tratamento
Orientações ao Prescritor
A CAD é uma emergência metabólica. O tratamento deve ser protocolar, com monitoramento rigoroso e reavaliações constantes. As três prioridades são: 1) Hidratar, 2) Corrigir a acidose com insulina e 3) Manejar o potássio. A correção deve ser lenta e gradual para minimizar o risco de edema cerebral.
Prescrição de Admissão e Estabilização Inicial
1. Admitir em UTI Pediátrica ou Sala de Emergência com monitorização contínua (cardíaca, oximetria, PA).
2. Manter em jejum (NPO).
3. Obter dois acessos venosos periféricos.
4. Coletar exames de urgência: Glicemia capilar, Gasometria venosa com lactato, Eletrólitos (Na, K, Cl), Ureia, Creatinina, Hemograma, Cetonas séricas (beta-hidroxibutirato) ou urinárias.
5. Iniciar Ressuscitação Volêmica Inicial:
Prescrição: Soro Fisiológico 0,9%, 10 a 20 mL/kg, IV, para infundir em 1 hora. NÃO administrar em bolus rápido, a menos que o paciente esteja em choque hipotensivo.
Prescrição da Hidratação e Insulinoterapia Contínua
Cálculo da Hidratação para 48 horas:
1. Calcular o déficit de fluido (geralmente assume-se 7-10% de desidratação): Déficit (mL) = % desidratação x Peso (kg) x 10.
2. Calcular a necessidade hídrica de manutenção (Regra de Holliday-Segar).
3. Somar [Déficit + Manutenção] e subtrair o volume já infundido na primeira hora. Infundir o volume restante de forma contínua ao longo de 48 horas.
Início da Insulinoterapia (APÓS a primeira hora de hidratação):
Prescrição:
1. NÃO FAZER BOLUS DE INSULINA.
2. Iniciar infusão contínua de Insulina Regular 0,05 a 0,1 UI/kg/hora, IV.
Preparo da Solução de Insulina: Diluir 50 UI de Insulina Regular em 500 mL de Soro Fisiológico 0,9% (resultando em 0,1 UI/mL) e administrar em bomba de infusão.
Prescrição para Reposição de Potássio
Início: Assim que a diurese for confirmada e o nível de potássio inicial for < 5,5 mEq/L. A reposição de K+ deve ser adicionada ao soro de hidratação.
Prescrição:
Se K+ sérico entre 3,5 e 5,5 mEq/L: Adicionar Cloreto de Potássio (KCl) 40 mEq para cada 1000 mL de solução de hidratação.
Se K+ sérico < 3,5 mEq/L: Adicionar KCl 60 mEq para cada 1000 mL de solução. Nesse caso, considerar atrasar o início da insulina até que o K+ comece a subir.
Ajustes da Terapia ("Sistema de Duas Bolsas")
Quando a glicemia atingir aproximadamente 250 mg/dL, o tratamento precisa ser modificado para continuar corrigindo a acidose sem causar hipoglicemia.
Prescrição de Ajuste:
1. NÃO suspender a infusão de insulina. Manter a dose em 0,05-0,1 UI/kg/h até que a acidose resolva (pH > 7,3; Bicarbonato > 15).
2. Trocar o soro de hidratação para uma solução contendo glicose.
Prescrição: Iniciar Soro Glicosado 5% com Soro Fisiológico 0,45% e Cloreto de Potássio 40 mEq/L, mantendo a mesma taxa de infusão horária calculada.
Se a glicemia continuar caindo, aumentar a concentração de glicose no soro para 7,5%, 10% ou 12,5%.
Monitoramento Prescrito
1. Monitorar Glicemia Capilar a cada hora.
2. Monitorar Eletrólitos (Na, K, Cl) e Gasometria Venosa a cada 2 a 4 horas.
3. Avaliação Neurológica (Escala de Coma de Glasgow) a cada hora. Procurar ativamente por sinais de edema cerebral (cefaleia, vômitos, alteração de consciência).
Prescrição para Transição para Insulina Subcutânea
Critérios para Transição: Paciente clinicamente bem, aceitando dieta oral, com resolução da acidose (pH > 7,3 e Bicarbonato > 15 mEq/L).
Prescrição:
1. Calcular a dose diária total de insulina subcutânea (geralmente 0,5 a 1 UI/kg/dia).
2. Administrar a primeira dose de insulina de ação rápida ou ultrarrápida subcutânea 15-30 minutos ANTES da refeição.
3. Manter a infusão de insulina IV por 1 a 2 horas APÓS a primeira aplicação subcutânea, e então suspender.
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